sexta-feira, 15 de junho de 2007

Crônica de um Não fui eu!


Ele é só mais um menino!
- Pô pivete, ce viu aquela equação do primeiro grau?! Miseravona, né?!
- Tu é doido! Deus é mais! Odeio matemática!
- Vamo passar na lan house, e jogar uma partidinha de counter strike?!
- Demoro!!!
De repente, o susto...
- Ô véi, ô véi... Guarda essa arma aí na sua mochila.
- Ta maluco?! Não gosto dessas coisas, não!
- Rapaz, os homi tão aí fora dando bacorejo em todo mundo!
- Cole maluco, deixe o pivete!
- Fique na sua, ô mane!
- Pivete, você é sobrinho de padre, os homi não vão desconfiar de você. Guarda aí meu trabuco, vai!
- Rapaz, num dá não.
- Ô pivete, quem é que está com a arma na mão, heim!? Abre logo essa mochila...
Depois da arma guardada, o dono corre e foge...
- Hei, você aí, de mochila, venha cá.
Trêmulo se aproxima...
- Oi...
- Abre a mochila, vai.
O presente de grego é encontrado pela polícia...
- Tá armado né pivete!
- Não! A arma não é minha. Foi aquele...
Cadê o dono? A essa altura já estava a quilômetros daquele ensejo...
- Foi nada! Ce vai dormir na cadeia, vai vê o sol nascer quadrado, pivete! Há, há, há...
Três dias depois... Com 40 graus de febre, olhos fundos, seus um metro e dez centímetros de pré-adolescência e sua magreza mais aparente do que antes... Deitado em um leito na casa da avó...
- E aí, baixinho, superando a barra?
- Um hum.
- Foi difícil, né?
- Um hum.
Adultos são tão idiotas frente a crianças, frente a problemas...
- Você chorou?
- A noite toda!
Finalmente uma resposta...
- Fiquei só de cueca, deitei no chão frio, não tinha cama, nem lençóis, nem papelão. Fez muito frio á noite. Me deram banho gelado. Fiquei a noite toda acordado.
- Você ficou doente por isso, né? Eles te maltrataram?
Um chato e incômodo silêncio... Quer maltrato pior do que ser confundido e tratado como um bandido? Ser preso, humilhado e insultado? Isso na cabeça de qualquer adulto seria terrível, imagine na cabeça de um guri...
- O cara que me botou nessa vai acabar pagando!
- Não, rapaz, não pense nisso. Vingança, sentimentos ruins só nos atrapalham. Pense em ficar bem. Não se preocupe, a justiça tarda mais não falha.
A do homem, a de Deus...
- Ta, agora vou dormir.Talvez, só o sono o ajude a esquecer marcas tão cruéis impressas em sua vida. Ele, que é mais um menino vítima da violência urbana. E a maioridade penal, devemos mesmo diminuí-la?

Ó panós, do Pelô, ó!


Na única terra em que “Aonde” quer dizer “Não”, em que os nativos “não nascem, estréiam” e que a cada instante surge uma “arte” nova, “Ó paí ó” não é estranheza, mas sim confirmação. Confirmação de quê? Da singularidade de um povo que inventa alternativas criativas para sobreviver numa realidade de dores.
O espetáculo “Ó paí ó” do Bando de teatro Olodum, que iniciou sua trajetória teatral no início da década de 1990, é uma encenação da dura rotina dos moradores e transeuntes do Pelourinho, em Salvador. Com uma boa dose de comédia - outra não tão boa de palavrões - dramas sociais são realçados por cada personagem: Pobreza, exploração sexual, discriminação, e o principal, o extermínio de crianças envolvidas, ou não, no submundo da criminalidade.
Com texto e direção de Márcio Meirelles, ex-diretor do Bando e atual Secretário de Cultura do Estado da Bahia, a trama possui um elevado grau de verossimilhança com a ambiência urbana contraditória do Pelô, endossada com o figurino e o cenário de Zuart Júnior. A “gringalhada” querendo “ser negro, e os pretos querendo virar branco”. A frase proferida pela baiana de acarajé – na peça, interpretada pela atriz Rejane Maia – contextualiza a inserção cada vez maior de outras culturas misturando-se com a nossa. Mas, nisso não há problemas. O problema é quando crianças, em extrema condição de miséria, são “apagadas” de uma cena bonita do nosso cartão postal, para não causar problemas para os lojistas e seus clientes internacionais. A polícia é quem faz o “difícil” trabalho de limpeza. Coisa que fazem sem reclamar [ou pior, reclamam quando alguém mostra isto!].
Essa crítica social é retratada em “Ó pai ó” de modo a fazer o público sair do teatro com muitas interrogações sobre o seu real papel na sociedade, mesmo sendo uma comédia. A forte trilha sonora, de Jarbas Bittencourt, que é tocada e cantada pelos atores – ao vivo -, ajuda a proliferar essa crítica, por meio das raízes do samba reggae. “Ó paí ó” teve uma primeira montagem apresentada em 1992, contando com a atuação do ator Global Lázaro Ramos, que na época era integrante do Bando e pelas atrizes, também ex-integrantes, Tânia Tôko (Nelzão da Rocha, dona do bar), Edvana Carvalho (Dona Lúcia, vendedora da Loja de Sr Gereba) e a surpreendente e talentosa Luciana Souza - Dona Joana, a crente, proprietária do Cortiço.
Ó pai ó! O espetáculo teatral é tão sólido em sua riqueza artística e em sua crítica da realidade social que virou filme. O longa metragem dirigido pela baiana Monique Gandeberguer trouxe de volta Lázaro, junto com outro baiano de sucesso nas telinhas, Wagner Moura, além de outros atores da Rede Globo e do elenco da peça. O filme é sucesso total na Bahia [os camelôs que o diga] e invadiu o Brasil com as gírias, as mandingas, o sofrimento e a alegria do povo baiano.